sexta-feira, 29 de maio de 2015

A Eclesiologia do Documento de Aparecida - IGREJA E MISSÃO




O discurso inaugural do Papa Bento XVI na abertura da V Conferência teve uma importância decisiva na elaboração do Documento de Aparecida, pois o Papa apontava para os Desafios da sociedade de hoje:
·                    O inpacto da sociedade pluralista na fé dos católicos, que acaba por enfraquecer e relativizar a visão cristã da realidade. A visão cristã etava se limitando a visão de um humanismo atrofiado que por sua vez estava se tornando presa do hedonismo, do secularismo e do indiferentismo. Deste modo a identidade católica se vê questionada e desgastada em muitos membros da Igreja, especialmente  por cusa da ausência de uma autêntica formação cristã. Este desafio irá exigir uma séria reflexão sobre a identidade do discípulo de Cristo;   
·                    Um outro fator diz respeito às mudanças de cunho social, cultural, político e econômico que vem passando o nosso planeta.

A. A Igreja como realidade intrinsecamente missionária

Abordamos aqui, embora brevemente, a. fundamentação teológica da missão como componente essencial da Igreja. Já presente na ideia de Israel como "luz para as nações", ela se faz presente no Novo Povo de Deus através do envio dos apóstolos, por parte de Jesus Cristo, a proclamar o Evangelho do Reino a todos os povos. A Igreja recebe todo o seu sentido por estar a serviço do Reino de Deus. Esta verdade receberá uma formulação precisa no Concílio Vaticano II através da noção de sinal do Reino presente e futuro, a saber, "como sacramento universal da salvação" (LG 48).

B. Características marcantes desta missão da Igreja

Observemos primeiramente que o tema da missão atravessa todo o Documento. Desde o seu início se ressalta que a fé de muitos cristãos sofre o impacto da atual cultura secularizada exigindo, portanto, "uma evangelização muito mais missionária" (13). Igualmente a sua conclusão insiste mais de uma vez na índole missionária de todo cristão. Devemos sair ao encontro das pessoas para "partilhar o dom do encontro com Cristo", não podemos ficar passivos, devemos "proclamar que o mal e a morte não têm a última palavra", "somos todos testemunhas e missionários" (548). Para isso devemos nos converter, devemos "ser novamente evangelizadose" e estar "conscientes de nossa responsabilidade" pelos que estão afastados (549). Impõe-se "uma missão evangelizadora" que mobilize a todos (550) e que deve se concretizar numa "missão continental" (551).
O advento da sociedade moderna, pluralista, secularizada, fragmentada, significou o fim da época da cristandade. Na época da cristandade a fé cristã era hegemónica, fornecendo uma visão do mundo e normas éticas que moldavam a sociedade. Ter fé nada exigia de especial, já que todos a professavam, embora a vivessem diferentemente. A fé era um pressuposto implícito na cultura da época. A sociedade respaldava esta fé que, na maioria dos casos, carecia de uma formação cristã adequada. Deste modo podemos caracterizar a pastoral da Igreja neste período como uma "pastoral de conservação" que. hoje, se mostra insuficiente e inadequada. Devemos, portanto, voltar à pastoral de conquista que caracterizou a Igreja em seu início e que só foi abandonada pelo surgimento da cristandade e da união da Igreja com o poder civil a partir de Constantino. A atual sociedade pluralista nos oferece uma situação de Igreja em diáspora muito semelhante a dos primeiros séculos.

Outra característica do discípulo de Cristo como missionário, fortemente enfatizada em Aparecida, diz respeito à formação da própria identidade do cristão, que aparece como condição para sua vocação pastoral. Já que a fé não é mais simplesmente pressuposta, tal como se dava no passado, se impõe um encontro pessoal com Jesus Cristo. Aqui o texto retoma as palavras de Bento XVI na encíclica Deus Caritas Est (DCE 1): "Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou por uma grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, com isso, uma orientação decisiva" (243). Assim nasceu o cristianismo através da experiência dos primeiros discípulos com Jesus Cristo, fascinados com sua pessoa (244). Este traço também é requerido em nossos dias, pois a vocação cristã "responde ao desejo de realização humana, ao desejo de vida plena" (277).

Este encontro acontece hoje através da proclamação do kerigma (289) e implica uma experiência salvífïca pessoal, fundamento do compromisso com Jesus Cristo e com sua missão (290). Deste encontro se deslancha todo um processo de formação, que apresenta várias etapas, não só sucessivas, mas também interagindo entre si. O Documento descreve as etapas deste modo: o encontro com Jesus Cristo, a conversão, o discipulado, a comunhão e a missão (278). Discipulado está aqui significando um crescimento na vocação cristã, também do ponto de vista doutrinal, e comunhão lembra a dimensão comunitária da vida cristã com tudo o que daí decorre. Observa-se ainda que a missão é inseparável do discipulado, estando assim sempre presente na vida do cristão, embora se realize diversamente. Com relação aos pronunciamentos anteriores da Igreja o texto de Aparecida apresenta duas novidades. Primeiramente ao insistir na importância da experiência salvífïca pessoal no encontro com Jesus Cristo quando no passado a preocupação maior era com a catequese doutrinal. A outra novidade está na ênfase dada à evangelização quando no passado a pastoral estava mais centrada nos sacramentos. O fim da cristandade não se limita somente ao continente latino-americano.

A missão tal como a compreende o texto de Aparecida vem caracterizada como uma "missão a serviço da vida plena" (título do capítulo VII) e recebe base escriturística (355) no conhecido versículo de João: "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham plenamente" (Jo 10,10). Esta vida é uma realidade em nós por participarmos da própria vida de Deus ao acolhermos a pessoa de Jesus Cristo (348), uma vida nova que nos incorpora a uma comunidade eclesial de outros que vivem esta mesma vida (349). Mas, como discípulos, devemos nos colocar a serviço da vida integrai como o fez Jesus ao curar enfermos, reintegrar excluídos na sociedade, saciar os famintos, perdoar os pecadores, conviver com todas classes de pessoas, sensibilizar-se pêlos mais pobres (353). Esta vida integral deverá ser vivida pelo próprio discípulo em todas as suas dimensões: "pessoal, familiar, social e cultural". Como diz expressamente o texto: "A vida em Cristo inclui a alegria de comer junto, o entusiasmo de progredir, o gosto de trabalhar e aprender, o prazer de servir a quem necessite, o contato com a natureza, o entusiasmo dos projetos comunitários, o prazer da sexualidade vivida segundo o Evangelho" (356).|

E já que "não podemos conceber uma oferta de vida em Cristo sem um dinamismo de libertação integral, de humanização, de reconciliação e de inserção social" (359), é importante que ela esteja presente em todas as atividades da Igreja. "Por isso a doutrina, as normas, as orientações éticas, e toda a atividade missionária da Igreja devem deixar transparecer esta oferta atraente de uma vida mais digna, em Cristo, para cada homem e para cada mulher da América Latina e do Caribe" (361).

Esta missão deve estar voltada também para os "novos areópagos e centros de decisão". O mundo da mídia, dos construtores da paz, dos que lutam pelo desenvolvimento e libertação dos povos, sobretudo das minorias, pela promoção da mulher e das crianças, pela ecologia e proteção da natureza. Também o areópago da cultura, dos experimentos científicos, das relações internacionais (491), sem deixar de lado a pastoral do turismo e do lazer (493). Urge formar pensadores e pessoas situadas nos centros de decisão: empresários, políticos, formadores de opinião, dirigentes sindicais (492).

Mas também deve se dirigir aos pobres, através de opções e de gestos visíveis que busquem mudar sua situação. Trata-se de "um âmbito que caracteriza de modo decisivo a vida cristã, o estilo eclesial e a programação pastoral" (394 citando Novo Millenium Ineunte 49). Daí, o apelo por "uma renovada pastoral social para a promoção humana integral" expressa no VIII capítulo do Documento (8.4), bem como a nos voltarmos aos rostos sofridos: habitantes de rua, enfermos, drogados, migrantes, presos (8.6).

Toda a Igreja se encontra envolvida nesta missão em prol do Reino de Deus. Todo discípulo é missionário, pois ao se comprometer com Jesus Cristo, necessariamente já se vincula com sua missão. Portanto testemunhar a morte e a ressurreição salvíficas de Jesus Cristo "não é uma tarefa opcional, mas parte integrante da identidade cristã" (144). A missão consiste mais em partilhar e comunicar uma experiência plenifícante na alegria e na gratidão (145). Esta afirmação volta continuamente ao longo do Documento conforme os variados temas vão sendo tratados. Uma afirmação que vale assim para todo o Povo de Deus, a começar pêlos bispos juntamente com suas respectivas dioceses, que devem "robustecer sua consciência missionária", indo ao encontro dos afastados da vida eclesial  através  de  uma pastoral  orgânica renovadana  qual  todos  os  da  diocese, independente de seus carismas, estejam inseridos (168 e 169). Também os párocos devem viver "num constante anseio de buscar os afastados e não se contentar com a simples administração" (201). "A V Conferência Geral é uma oportunidade para que todas nossas paróquias se tornem missionárias" (173). De fato, "todos os membros da comunidade paroquial são responsáveis pela evangelização de homens e mulheres em cada ambiente" (171). Para isso devem as paróquias "reformular suas estruturas para que sejam uma rede de comunidades e grupos, capazes de se articularem para que seus participantes se sintam e sejam, realmente, em comunhão, discípulos e missionários de Jesus Cristo" (172).

os diáconos permanentes devem se dedicar a "grupos humanos específicos e pastorais ambientais", bem como devem ser "apóstolos em suas famílias, em seus trabalhos, em suas comunidades e nas novas fronteiras da missão" (208). Os consagrados\as anunciam o Evangelho "através de sua presença, vida comunitária e obras", principalmente aos mais pobres, o que de fato se deu neste continente desde o início da evangelização. Deste modo colaboram "com a gestação de uma nova geração de discípulos missionários e de uma sociedade na qual a justiça e a dignidade da pessoa humana sejam respeitadas" (217).

O Documento deixa bastante explícito seu apelo por um laicato missionário. Devem ser formados para fazer frente aos desafios da atual sociedade, entrando no mundo complexo do trabalho, da cultura, das ciências e das artes, da política, dos meios de comunicação e da economia, enfim em contextos nos quais tormam presente a Igreja (174 e 210). Eles participam assim da "ação pastoral da Igreja, primeiramente pelo seu testemunho de vida e, em segundo lugar, com ações no campo da evangelização, da vida litúrgica e em outras formas de apostolado" (211). Por isso mesmo devem gozar de maior espaço de participação e serem incumbidos de ministérios e de responsabilidades para que possam viver de modo responsável seu compromisso cristão (211).

Só assim haverá uma efetiva corresponsabilidade e participação de todos os fiéis na vida das comunidades (368). Só assim, devidamente formados, poderão atuar como verdadeiros sujeitos eclesiais e competentes interlocutores entre a Igreja e a sociedade (497). Só assim poderão também assumir sua responsabilidade na vida pública (508). Portanto devem participar dos projetos pastorais diocesanos "no discernimento, na tomada de decisões, na planificação e na execução" (371), sendo assim "parte ativa e criativa na elaboração e execução de tais projetos" (213). O Documento observa, fazendo suas as palavras de Bento XVI em seu Discurso Inaugural (4), que há "uma notável ausência no âmbito político, comunicativo e universitário de vozes e iniciativas de líderes católicos de forte personalidade e de vocação abnegada que sejam coerentes com suas convicções éticas e religiosas" (502), lutando pela vida em todas as suas formas (503) e colaborando "na construção de uma cidade temporal de acordo com o projeto de Deus" (505). De fato, já nos acostumamos a assistir a uma imediata intervenção da hierarquia, sempre que surge algum problema que atinja a Igreja. Não vemos uma tomada de posição por parte de leigos católicos, conhecedores da matéria, que amadureçam a questão por seus pronunciamentos e debates, abrindo assim caminho para uma declaração posterior mais completa e profunda do bispo ou mesmo do episcopado. Naturalmente, além da correspondente liberdade para intervir, se requer uma formação adequada, o que não passou desapercebido aos bispos em Aparecida.

Reflexão feita por Mário de França Miranda


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