O discurso inaugural
do Papa Bento XVI na abertura da V Conferência teve uma importância decisiva na
elaboração do Documento de Aparecida, pois o Papa apontava para os Desafios da
sociedade de hoje:
·
O inpacto da sociedade pluralista na fé dos católicos,
que acaba por enfraquecer e relativizar a visão cristã da realidade. A visão
cristã etava se limitando a visão de um humanismo atrofiado que por sua vez
estava se tornando presa do hedonismo, do secularismo e do indiferentismo.
Deste modo a identidade católica se vê questionada e desgastada em muitos
membros da Igreja, especialmente por
cusa da ausência de uma autêntica formação cristã. Este desafio irá exigir uma
séria reflexão sobre a identidade do discípulo de Cristo;
·
Um outro fator diz respeito às mudanças de cunho social,
cultural, político e econômico que vem passando o nosso planeta.
A. A Igreja como realidade intrinsecamente missionária
Abordamos aqui, embora brevemente, a.
fundamentação teológica da missão como componente essencial da Igreja. Já presente na ideia de Israel como
"luz para as nações", ela se faz presente no Novo Povo de Deus através do envio
dos apóstolos, por parte de Jesus Cristo, a
proclamar o Evangelho do Reino a todos os povos. A Igreja recebe todo o seu
sentido por estar a serviço do Reino de Deus. Esta verdade receberá uma
formulação precisa no Concílio Vaticano II através da noção de sinal do Reino presente e futuro, a
saber, "como sacramento universal da salvação" (LG 48).
B. Características marcantes desta missão da Igreja
Observemos primeiramente que o tema da missão atravessa
todo o Documento. Desde o seu início se
ressalta que a fé de muitos cristãos sofre o impacto da atual cultura secularizada exigindo, portanto, "uma
evangelização muito mais missionária" (13). Igualmente a sua conclusão
insiste mais de uma vez na índole missionária de todo cristão. Devemos sair ao encontro das pessoas para
"partilhar o dom do encontro com Cristo", não podemos ficar
passivos, devemos "proclamar que o mal e a morte não têm a última
palavra", "somos todos testemunhas e missionários" (548). Para
isso devemos nos converter, devemos "ser novamente evangelizadose" e
estar "conscientes de nossa responsabilidade"
pelos que estão afastados (549). Impõe-se "uma missão evangelizadora"
que mobilize a todos (550) e que
deve se concretizar numa "missão continental" (551).
O advento
da sociedade moderna, pluralista, secularizada, fragmentada, significou o fim
da época da cristandade. Na época da cristandade a fé cristã
era hegemónica, fornecendo uma visão do mundo e normas éticas que moldavam a sociedade. Ter fé nada exigia de
especial, já que todos a professavam, embora a vivessem diferentemente. A fé
era um pressuposto implícito na cultura da
época. A sociedade respaldava esta fé que, na maioria dos casos, carecia de uma formação cristã adequada. Deste modo podemos
caracterizar a pastoral da Igreja neste período
como uma "pastoral de conservação"
que. hoje, se mostra insuficiente e inadequada. Devemos, portanto, voltar à
pastoral de conquista que caracterizou a Igreja em seu início e
que só foi abandonada pelo surgimento da cristandade e da união da
Igreja com o poder civil a partir de Constantino.
A atual sociedade pluralista nos oferece uma situação de Igreja em diáspora muito semelhante a dos
primeiros séculos.
Outra característica do discípulo de Cristo como
missionário, fortemente enfatizada em Aparecida, diz respeito à formação da própria identidade do cristão, que
aparece como condição para sua vocação pastoral. Já que a fé não é mais
simplesmente pressuposta, tal como se dava no passado, se impõe um encontro
pessoal com Jesus Cristo. Aqui o texto retoma
as palavras de Bento XVI na encíclica Deus Caritas Est (DCE
1): "Não se começa a ser
cristão por uma decisão ética ou por uma grande ideia, mas pelo encontro com um
acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, com isso, uma
orientação decisiva" (243). Assim nasceu o cristianismo através da
experiência dos primeiros discípulos com
Jesus Cristo, fascinados com sua pessoa (244). Este traço também é requerido em nossos dias, pois a vocação
cristã "responde ao desejo de realização humana, ao desejo de vida
plena" (277).
Este
encontro acontece hoje através da proclamação do kerigma (289) e implica uma experiência salvífïca pessoal,
fundamento do compromisso com Jesus Cristo e com sua missão (290). Deste encontro
se deslancha todo um processo de formação, que apresenta várias etapas, não só sucessivas, mas também interagindo
entre si. O Documento descreve as
etapas deste modo: o encontro com Jesus Cristo, a conversão, o discipulado, a
comunhão e a missão (278). Discipulado está aqui significando um
crescimento na vocação cristã, também do ponto de vista doutrinal, e comunhão lembra a dimensão comunitária da vida cristã com tudo o que daí decorre.
Observa-se ainda que a missão é
inseparável do discipulado, estando assim sempre presente na vida do
cristão, embora se realize diversamente. Com relação aos pronunciamentos
anteriores da Igreja o texto de Aparecida apresenta
duas novidades. Primeiramente ao insistir
na importância da experiência salvífïca pessoal
no encontro com Jesus Cristo quando no passado a preocupação maior era com a
catequese doutrinal. A outra
novidade está na ênfase dada à evangelização quando no passado a pastoral estava mais centrada nos sacramentos. O fim da cristandade não se limita
somente ao continente latino-americano.
A missão tal como a compreende o
texto de Aparecida vem caracterizada como uma "missão a serviço da vida plena" (título
do capítulo VII) e recebe base escriturística (355) no conhecido versículo de João: "Eu
vim para que todos tenham vida e a
tenham plenamente" (Jo 10,10). Esta vida é uma realidade em nós por
participarmos da própria vida de Deus ao acolhermos a pessoa de Jesus
Cristo (348), uma vida nova que nos incorpora
a uma comunidade eclesial de outros que vivem esta mesma vida (349). Mas, como discípulos, devemos nos colocar a serviço da vida integrai
como o fez Jesus ao curar enfermos, reintegrar excluídos na
sociedade, saciar os famintos, perdoar os pecadores, conviver com todas classes
de pessoas, sensibilizar-se pêlos mais pobres (353). Esta vida integral deverá ser vivida pelo próprio discípulo em todas as suas
dimensões: "pessoal, familiar, social e cultural". Como diz expressamente
o texto: "A vida em Cristo inclui a alegria de comer junto, o entusiasmo de progredir, o gosto de
trabalhar e aprender, o
prazer de servir a quem necessite, o contato com a natureza, o entusiasmo dos
projetos comunitários, o
prazer da sexualidade vivida segundo o Evangelho" (356).|
E já que "não podemos conceber uma oferta de vida em
Cristo sem um dinamismo de libertação integral, de humanização, de reconciliação
e de inserção social" (359), é importante
que ela esteja presente em todas as atividades da Igreja. "Por isso
a doutrina, as normas, as orientações éticas, e toda a atividade
missionária da Igreja devem deixar transparecer
esta oferta atraente de uma vida mais digna, em Cristo, para cada homem e para cada mulher da América Latina e do
Caribe" (361).
Esta
missão deve estar voltada também para os "novos areópagos e centros de decisão". O mundo da mídia, dos construtores
da paz, dos que lutam pelo desenvolvimento e libertação dos povos, sobretudo
das minorias, pela promoção da mulher e das crianças, pela ecologia e proteção da natureza. Também o areópago
da cultura, dos experimentos científicos,
das relações internacionais (491), sem deixar de lado a pastoral do turismo e
do lazer (493). Urge formar
pensadores e pessoas situadas nos centros de decisão: empresários, políticos,
formadores de opinião, dirigentes sindicais (492).
Mas também deve se dirigir aos
pobres, através de opções e de gestos visíveis que busquem mudar sua situação.
Trata-se de "um âmbito que caracteriza de modo decisivo a vida cristã, o estilo eclesial e a programação
pastoral" (394 citando Novo Millenium Ineunte 49). Daí, o apelo por "uma renovada pastoral social para a
promoção humana integral" expressa no VIII capítulo do Documento (8.4), bem
como a nos voltarmos aos rostos sofridos: habitantes de rua, enfermos, drogados, migrantes,
presos (8.6).
Toda a Igreja se encontra envolvida
nesta missão em prol do Reino de Deus. Todo
discípulo é missionário, pois ao se comprometer com Jesus
Cristo, necessariamente já se vincula com
sua missão. Portanto testemunhar a morte e a ressurreição
salvíficas de Jesus Cristo "não é uma tarefa opcional, mas parte
integrante da identidade cristã" (144). A missão consiste mais em partilhar e comunicar uma
experiência plenifícante na alegria e na gratidão (145). Esta
afirmação volta continuamente ao longo do Documento conforme os variados temas vão sendo tratados.
Uma afirmação que vale assim para todo o Povo de Deus, a começar pêlos bispos
juntamente com suas respectivas dioceses, que devem "robustecer sua
consciência missionária", indo
ao encontro dos afastados da vida eclesial
através de uma pastoral
orgânica renovada, na
qual todos os
da diocese, independente de seus carismas, estejam inseridos (168 e 169). Também os párocos devem viver
"num constante anseio de buscar os afastados e não se contentar com
a simples administração" (201). "A
V Conferência Geral é uma oportunidade para que todas nossas paróquias se
tornem missionárias" (173). De
fato, "todos os membros da comunidade paroquial são responsáveis pela evangelização de homens e mulheres em cada
ambiente" (171). Para isso devem as paróquias "reformular suas estruturas para que
sejam uma rede de comunidades e grupos, capazes de se articularem para
que seus participantes se sintam e
sejam, realmente, em comunhão, discípulos e
missionários de Jesus Cristo" (172).
Já os diáconos
permanentes devem se dedicar a "grupos humanos específicos e pastorais
ambientais", bem como devem ser "apóstolos em suas famílias, em seus
trabalhos, em suas comunidades e nas novas fronteiras da missão" (208). Os consagrados\as
anunciam o Evangelho "através de sua presença, vida comunitária
e obras", principalmente aos mais pobres, o que de fato se deu neste
continente desde o início da
evangelização. Deste modo colaboram "com a gestação de uma nova geração de
discípulos missionários e de uma sociedade na qual a justiça e a dignidade da pessoa humana sejam respeitadas"
(217).
O Documento deixa bastante explícito
seu apelo por um laicato missionário.
Devem ser formados para fazer frente aos desafios
da atual sociedade, entrando no mundo complexo do trabalho, da cultura, das
ciências e das artes, da política, dos
meios de comunicação e da economia, enfim
em contextos nos quais tormam presente a Igreja (174 e 210). Eles participam assim da "ação pastoral da
Igreja, primeiramente pelo seu testemunho de vida e, em segundo lugar, com ações no campo da
evangelização, da vida litúrgica
e em outras formas de
apostolado" (211). Por isso
mesmo devem gozar de maior espaço de participação e serem incumbidos de
ministérios e de responsabilidades para que possam viver de modo responsável seu compromisso cristão (211).
Só assim haverá uma efetiva corresponsabilidade e
participação de todos os fiéis na vida das
comunidades (368). Só
assim, devidamente formados, poderão atuar como verdadeiros sujeitos eclesiais
e competentes interlocutores entre a Igreja
e a sociedade (497). Só assim poderão também assumir sua
responsabilidade na vida pública (508). Portanto devem participar dos projetos pastorais diocesanos "no
discernimento, na tomada de decisões, na planificação e na execução" (371),
sendo assim "parte ativa e criativa
na elaboração e execução de tais projetos" (213). O Documento observa, fazendo suas as palavras de Bento XVI em seu Discurso Inaugural (4), que há
"uma notável ausência no âmbito político, comunicativo
e universitário de vozes e iniciativas
de líderes católicos de forte personalidade e de vocação abnegada que
sejam coerentes com suas convicções éticas e religiosas" (502), lutando pela vida em todas as suas formas
(503) e colaborando "na construção de
uma cidade temporal de acordo com o projeto de Deus" (505). De fato, já nos acostumamos a assistir a uma imediata intervenção da
hierarquia, sempre que surge algum problema que atinja a Igreja. Não vemos uma tomada de posição por parte
de leigos católicos, conhecedores da
matéria, que amadureçam a questão por seus pronunciamentos e debates, abrindo
assim caminho para uma declaração posterior mais completa e profunda do
bispo ou mesmo do episcopado. Naturalmente, além da correspondente liberdade
para intervir, se requer uma formação adequada, o que não passou desapercebido
aos bispos em Aparecida.
Reflexão feita por Mário de França Miranda